quinta-feira, 31 de janeiro de 2013


Crítica filme "Amor" (Amour / 2012 / França, Áustria, Alemanha) dir. Michael Haneke

por Lucas Wagner


   Em uma das primeiras cenas de Amor, o diretor e roteirista Michael Haneke adota um longo plano no qual mostra uma plateia esperando para assistir a um músico tocar. Nesse momento, o diretor posiciona o casal protagonista no ponto de fuga inferior esquerdo da tela, que é o que menos atrai a atenção do espectador. Como ainda não somos totalmente familiarizados com os rostos dos dois personagens, é difícil assim distingui-los dentre os outros espectadores na plateia. Mas qual o objetivo de Haneke com esse longo plano? Nós, a plateia em um cinema observando uma plateia aguardando o início de um show, olhando diretamente para a câmera. Qual o sentido? Nós estamos olhando para eles ao mesmo tempo em que eles olham para nós. Só esse plano já seria um belo estopim para uma discussão sobre o valor da Arte: essa forma de comunicação tão sofisticada e cada vez mais complexa produzida pelo ser humano nos leva a encarar verdades sobre nós mesmos, sejam essas boas ou ruins; então ao mesmo tempo em que observamos aquelas pessoas comuns, sem nada de especial, elas nos observam, pessoas nada especiais também, se não adotarmos um olhar mais atento, e é como se Haneke estivesse nos preparando para o que veremos nas próximas duas horas: a dolorida história de um casal que caminha aos poucos para o fim da vida. Que é, acima de tudo, uma história extremamente comum, assim como as histórias de todos aqueles indivíduos na plateia do músico e como todas as que carregamos com nós mesmos. O cotidiano está cheio de histórias trágicas e felizes, sorrisos e choros, e é um dos grandes papeis da Arte nos fazer encarar temas comuns só que com maior sensibilidade, algo que é anestesiado pelo cotidiano.

  Esse plano também se insere com perfeição na carreira de seu diretor, que em quase todos os seus filmes parece ter um prazer quase maligno em demonstrar como é capaz de manipular o espectador e seus sentimentos durante o tempo em que estamos à sua mercê, e ainda estabelecer um contato quase que direto com o espectador (vide Violência Gratuita). Porém, no resto da projeção, embora Haneke ainda apresente sua predileção por planos longos e ausência de trilha sonora, o diretor parece assumir um ponto de vista mais doce e sensível quanto a um projeto seu, não nos obrigando a encarar como somos podres e deploráveis como espécie (como fez em quase todos seus outros filmes), mas encarar nossa fragilidade enquanto seres vivos, que, no mísero espaço de tempo em que passamos nesse pálido ponto azul chamado Terra, vivemos em busca de dar algum sentido à nossa existência, mesmo que inevitavelmente um dia tudo isso acabe. Dessa forma, o diretor constrói com Amor uma obra-prima sublime e profundamente complexa, que não nos trata como crianças mas como adultos perfeitamente capazes de encarar nossa fragilidade existencial. E faz isso através de um estudo de personagens impecável.

  Concentrando basicamente toda a narrativa dentro da residência de Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuele Riva), Haneke já nos obriga a um mergulho profundo na vida daquele casal. Com o casal já confortável com a convivência a dois, já que já passaram mais da metade da vida juntos, o diretor opta por uma estratégia eficiente na direção de arte, que é a de mergulhar quase todo o ambiente da casa em móveis que possuem cor marrom ou em um tom mais pastel, que são cores que transmitem uma sensação de melancolia e de envelhecimento. No entanto, na biblioteca do casal, Haneke demonstra sua inteligência ao colocar na sala diversos livros com cores mais fortes e chamativas, além de joviais, como azul, verde, ou, principalmente, amarelo. A partir disso o diretor se mostra genial ao inserir os personagens em um universo particular de forma econômica mas não menos complexa. Observamos que Anne é uma personagem mais orgulhosa, que é obrigada a encarar uma doença degenerativa que a corrói lentamente e tira praticamente qualquer juventude dela e a obriga a encarar a própria mortalidade, por mais que doa e fira seu orgulho. Assim, Haneke, quando o casal está na biblioteca, filma os planos em que Anne aparece sem que sejamos capazes de vislumbrar algum livro com alguma cor mais forte: pelo contrário, nesses momentos os livros que aparecem perto e ao redor dela possuem cores pasteis. Com Georges já é diferente, já que esse personagem ainda não seja obrigado a encarar de frente sua condição de estar perto da morte, embora não a ignore. Haneke então, na biblioteca, o posiciona sempre de frente a um conjunto de livros amarelos, e, aos poucos durante o filme, vai posicionando sua câmera de modo que esses livros fiquem mais e mais difíceis de serem notados, o que é lindo para representar o próprio arco dramático do personagem, e chega a ser sintomático que, no final (SPOILER! Continue depois do próximo ponto final, se não tiver assistido), depois do clímax, Georges se acomode em um quarto com livros com capas de cores sem graça e apresentando óbvio envelhecimento; a mensagem á clara: o personagem tenta encontrar conforto em seu passado, representado pelos livros, que agora não apresentam a juventude de antes, já que sua visão de si mesmo mudou. Aliás, o diretor vai tornando qualquer capa de livro colorida mais e mais difícil de serem enxergadas, nos mergulhando cada vez mais no mundo de velhice dos personagens; e é lindo o momento em que o jovem personagem Alexandre está de pé (e podemos ver livros coloridos no fundo do campo do quadro) e se senta, com a câmera acompanhando o movimento, em plano médio, sendo que nesse momento, os livros agora atrás dele apresentam as cores habituais do resto da casa, como se o personagem estivesse literalmente mergulhando no mundo envelhecido e triste dos protagonistas (nessa perspectiva, o fato de o plano em que o vemos sentado ser tão exageradamente longo é perfeito por gerar agonia no próprio espectador, refletindo a agonia do personagem).

  Haneke ainda é sábio no figurino, e transmite diversas mensagens a partir deste. As cores habituais das roupas de Georges e Anne são sempre escuras. Mas no primeiro momento em que vemos sua filha, Eva (Isabelle Rupert), esta está discutindo sobre sua difícil vida amorosa e profissional, e está vestindo uma roupa amarela coberta por uma blusa preta. Isso pode representar como a correria e os problemas do cotidiano (representados pela cor preta) vão consumindo sua jovialidade (amarelo). No entanto, mais para frente do filme, quando sua mãe vai definhando mais e mais, o figurino de Eva vai ficando mais escuro, a ponto de chegar o momento em que entra na casa dos pais totalmente coberta pela cor preta. De fato, a morte do pai ou da mãe é um momento crucial na vida de qualquer indivíduo, já que é quando primeiramente encaramos nossa própria mortalidade. E é o que está acontecendo com Eva: consumida pela iminente morte da mãe, a moça vai encarando sua própria futura morte. E Haneke é mais do que genial ao, nessa mesma sequência em que Eva aparece completamente coberta pela roupa preta, quando inicia uma discussão com o pai, abrir a blusa revelando uma vestimenta de cor vermelho escuro, uma cor mais viva naquele universo, só que ainda assim triste; é como se ela juntasse suas forças para brigar com o pai, jogando contra ele o que ele não mais tem: a juventude. E tudo isso através de cores. O Cinema é lindo mesmo.

  Conduzindo a narrativa de forma extremamente lenta, Haneke presta atenção especial a pequenos detalhes do cotidiano do casal, desde Georges ajudando Anne a fazer exercícios, e até suas refeições. E o diretor ainda consegue criar pequenos momentos de brilhantismo como quando usa o som de uma torneira aberta para criar uma tensão quase que insuportável. E não são só nas coisas tristes que ele presta atenção: são de grande beleza momentos como quando Anne experimenta sua cadeira de rodas motorizada ou quando Georges conta histórias de sua juventude durante o jantar (que gera até uma linda frase; “Não me lembro do filme, mas me lembro do sentimento”). E não há como não encher os olhos de lágrimas nos dois momentos da projeção em que Georges ajuda Anne a sair de sua cadeira de rodas ou a voltar para ela, quando pega a esposa nos braços como que num abraço, só que agora num gesto repleto de dramaticidade. Porém, toda essa técnica e estratégia é tão bem sucedida graças ao sucesso de Haneke ao trabalhar sua temática: de mortalidade, envelhecimento, e da importância do outro em nossa vida.

  Sem desviar a câmera nem em momentos mais embaraçosos e tristes, Haneke desenvolve seus personagens com uma perfeição absoluta, e com uma objetividade impecável. E para isso, os dois atores protagonistas são dignos de todos os prêmios do mundo por conseguirem interpretar com força absoluta seus difíceis personagens. A indicada ao Oscar, Emmanuele Riva, se entrega completamente à performance de Anne, interpretando-a como uma senhora orgulhosa (observem sua cabeça inclinada para cima em diversos momentos) mas ferida, que vai perdendo a sanidade de forma gradual e inexorável. Atentem para momentos como o que Anne fala para Georges sobre como ela só piorará, e perceberão a impecabilidade da performance dela, do movimento preciso de cada músculo do corpo. Já Jean-Louis Trintignant interpreta Georges com o mesmo grau de atenção aos detalhes, o que fica bastante claro na sua calma desorientação ao primeiro sinal da doença de Anne e logo depois quando fala disso com a filha. Observem como Trintignant é gênio ao interpretar com tanta eficácia a lenta deteriorização de seu personagem que, diante da cada vez mais próxima morte da companheira, vai morrendo ele mesmo também. E Haneke cria sequências de ouro para que estes personagens possam ser desenvolvidos e que ele possa trabalhar sua temática. Sequências como aquela do sonho do Georges são de valor inestimável: olhem como Haneke é um Deus ao, através dessa pequena sequência, trabalhar a questão de como o envelhecimento vai tornando o mundo exterior ao conforto do lar mais e mais aterrorizante (prestem bem atenção no corredor escuro do sonho, do material de aparência destruída do elevador, ou até de como, mesmo não sendo no sonho, as janelas estão praticamente todas cobertas por uma cortina). Ainda vale lembrar de como Haneke filma a desorientação de Anne diante do fato de ter urinado na cama, e de como ele é bruto ao não respeitar a privacidade dessa personagem em um momento em que ela mais do que necessita, quando diz para Georges parar de observá-la, e a coisa imediata que o diretor faz é lançar um primeiro plano na face dela. Aliás, Haneke aqui emprega bem mais planos fechados do que usualmente faz em sua carreia, o que nos aproxima da psicologia de seus personagens.

  No fim, Amor é mais do que um estudo de personagens porque, através deste estudo, visa analisar a própria fragilidade de nossa existência. Quando Anne vai sucumbindo mais à insanidade, ela passa a clamar pela mãe, de maneira profundamente dolorosa. Por um viés psicanalítico, podemos enxergar isso como uma forma inconsciente da personagem clamar por sua infância, por uma época em que tudo era mais simples e que havia uma promissor futuro pela frente. Mas são chamados fúteis, e que só se acalmam quando Georges pega a mão da esposa e a acaricia lentamente. Esse é o momento mais lindo do filme e que me fez derramar algumas lágrimas. Na nossa inexorável caminhada para a morte, para o esquecimento, a única coisa que faz algum sentido e que realmente marca nossa jornada pela vida são os laços que criamos, as pessoas que amamos. Georges consegue trazer, mesmo que por um breve momento, Anne de volta à realidade, e ele estava lá do lado dela para ajudá-la nessa passagem. Todos nós morreremos, e a única coisa que importa no fim são as pessoas queridas a nós, um simples carinho em nossas mãos, ou um olhar. Quantas pessoas não constroem suas próprias vidas com base em olhares (e eu sou um deles)? Nós interagimos com os outros de forma que esses construam uma parte de nossas histórias e nós construamos uma parte da delas. Tudo o que no fundo precisamos é da atenção que alguém ceda a nós, mesmo que seja ao cortar alguns pedacinhos de flores para nos enfeitar. E se Georges vai definhando diante da degradação da esposa, é porque ela já era uma grande parte dele que, quando morre, o mata também. Isso é extremamente real, e inclusive aconteceu em minha própria família. Assim, Haneke acerta em cheio ao dar ao seu filme o simples, mas grandioso nome Amor, que é, de certa forma, o próprio sentido de nossa vida, o que nos separa de outras espécies de animais, e que nos faz grandes e frágeis ao mesmo tempo, embora paradoxalmente seja a única coisa que possa acalmar um pouco a turbulência que é viver e morrer. Como já disse o grande poeta Pablo Neruda: “Se nada nos salva da morte, que pelo menos o amor nos salve da vida”.

  Ainda assim um gesto de carinho perde sua força quanto mais caminhamos para a morte, e nem isso pode acalmar o nosso coração ou nos trazer de volta à sanidade. Mas não deixa de ser tudo, como fica claro no maravilhoso símbolo do pássaro (geralmente símbolo de liberdade) no filme (SPOILER ahead, continuem no próximo parágrafo se não tiverem assistido ainda): na primeira vez em que aparece, Georges o pôe para voar de novo, mas na segunda, depois da morte de Anne, Georges o encurrá-la e sufoca, como se sufocasse a si mesmo e sua própria liberdade que tinha nos resquícios de vida que o prendiam à existência. E que resquícios eram esses? Anne.
 
  Não consegui descrever com perfeição a beleza sufocante desse filme, ou a complexidade com que ele foi realizado, ou muito menos as profundas reflexões que ele despertou em mim. Mas fiz o que pude e só de escrever sobre o longa me sinto alguém mais amadurecido. Creio que uma sessão em um mesmo dia com obras-primas como esse Amor, Sinédoque, Nova York e A Árvore da Vida nos fariam seres humanos mais atentos e sensíveis, caminhando para o fim inevitável, mas sabendo encarar com mais admiração e respeito a tragédia que é amar e morrer...ou simplesmente existir.

  

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