segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013



Crítica Filme "A Caça" (Jagten / 2012 / Dinamarca) dir. Tomas Vinterberg

por Lucas Wagner


  Uma coisa maravilhosa sobre o Cinema (e que também se aplica à Literatura) é que, como somos espectadores, podemos enxergar situações complexas e aparentemente sem solução de diferentes pontos de vista. Podemos compreender os conflitos e os interesses de diferentes sujeitos dentro de uma mesma história, e (quando é bem feito) podemos ficar tão encurralados que não sabemos em quem depositar nossa confiança, ou mesmo ficar sem como emitir um juízo de valor, já que nossa visão de “cima”, ou “de fora” daquele universo faz com que compreendamos o sofrimento de cada um envolvido, assim como “os maus entendidos”.  A Caça, novo filme de Tomas Vinterberg, é um perfeito exemplo, já que consegue deixar o espectador sem saída, já que ficamos loucos para entrar dentro do filme e contar tudo o que sabemos para aqueles personagens, que não enxergam vários pontos cegos em suas próprias histórias. E como poderiam, afinal?

  Lucas (Mads Mikkelsen) é um sujeito tímido e tranquilo, mas também triste, já que acabou de enfrentar um divórcio complicado e passa muito pouco tempo com seu filho, Marcus. Ele trabalha em uma escola de jardim de infância, onde tem um excelente relacionamento com todos, inclusive com os alunos. Uma aluna em especial, Klara (Annika Wedderkopp), filha do seu melhor amigo, desenvolve uma paixão platônica por Lucas. Quando não é correspondida, ela afirma para a diretora da escola que Lucas lhe mostrou o pênis, desencadeando um processo de destruição da vida dele, que passa a ser rejeitado por todos na pequena cidade, já que agora é visto como pedófilo.

  Como podemos observar pela própria sinopse, a questão em que os personagens estão envolvidos é muito complicada. Muitas vezes, o que uma criança diz é considerado verdade, quando se trata de assuntos tão sérios assim. Então, não podemos culpar a diretora da escola ou os pais de Klara por acreditarem nela. E ai Vinterberg até propõe um questionamento interessante: até onde as crianças são tão puras e inocentes como acreditamos ser? Embora Klara tenha ouvido seu irmão falar de “vara”, e mais ou menos saiba o que é um pênis (que ela chama de “pipi”), o ato dela foi de vingança. Pode ter sido uma história que ela criou para substituir a renegação por parte de Lucas, mas ainda foi vingança. E o que é mais interessante é que ela sente mal depois por perceber que causou mal a Lucas. Mas as crianças são seres ainda mais complexos, donos de uma imaginação extremamente fértil, e que muitas vezes adotam ideias trazidas pelos próprios adultos, sem nem saber se é verdade ou não. Isso acontece aqui no longa, quando várias crianças começam a criar histórias mirabolantes sobre Lucas. E o pior é que elas acreditam! As informações externas que recebem confundem realidade com ficção, algo que Vinterberg demonstra com perfeição na confusão “mental” em que Klara é envolvida, já que, a partir de certo momento, parece realmente achar que Lucas lhe fez algo inapropriado, mesmo que ela tenha criado a história e saiba que é mentira.

  Sabemos que Lucas é inocente, e, é claro, torcemos por ele. Ficamos engasgados de vontade de entrar no filme e provar que ele é inocente. Mas a questão é tão complicada que, embora torçamos por ele, compreendemos que ele não sabe de todas as variáveis envolvidas que levaram à acusação de pedofilia. Como ele poderia imaginar que Klara disse o que disse só porque ele disse a ela que os dois não poderiam ficar juntos? Ela é uma criança, supostamente uma criatura pura e inocente, e como ele poderia imaginar que ela fez o que fez como uma espécie de vingança? Mas ainda, não há como julgar os outros personagens que ficam contra Lucas, que o acusam e que se comportam como monstros com ele. Nós provavelmente faríamos a mesma coisa se nos deparássemos com um suposto pedófilo como ele. Realmente compadecemos pela dor deles, algo que fica bem claro no momento em que Klara está brincando com o irmão que, se parecia uma pessoa distante, muda nossa visão sobre ele no momento em que começa a chorar ao observar a irmã, já que “supostamente” perdeu sua inocência nas mãos de um monstro. Então, o que é tão torturante, mas ao mesmo tempo tão fascinante sobre A Caça é que nunca podemos realmente julgar seus personagens. É como se fosse uma bola de neve que vai ganhando dimensões monstruosas, e só nós, espectadores, sabemos como desmanchá-la, mas não podemos fazer isso, e nos contentamos com todos aqueles personagens se destruindo por um terrível erro.

  Tudo fica ainda mais complexo devido ao fato de Vinterberg desenvolver com maestria alguns de seus personagens, e de também contar com um elenco primoroso. Lucas, por exemplo, é um cara comum mas que, justamente por sua expressão sempre triste, que se alegra somente quando brinca com as crianças (talvez uma forma de substituir o filho que ficou com a ex-esposa), sempre nos identificamos com ele, o que é essencial para nosso envolvimento nos conflitos que se seguem. Mas Lucas não seria nada sem a atuação primorosa de Mads Mikkelsen, em sua melhor performance até hoje (ele é mais conhecido por ser o vilão Le Chiffre do inesquecível 007 – Cassino Royale); sempre triste e contido, Mikkelsen demonstra talento ao conferir maior vivacidade (mesmo que não exagerada, o que trairia a natureza do personagem) a Lucas em pequenos gestos, como quando recebe a notícia de que Marcus morará com ele. Mas Mikkelsen é realmente genial ao compor Lucas como um sujeito que, mesmo sob ataque, permanece passivo, sofrendo solitariamente, mas com uma violência latente, que mantém escondida talvez justamente pelos efeitos destrutivos que essa poderia gerar. Mas ele não se segura completamente e, em alguns momentos deixa um pouco dessa violência extravasar, já que o nível de humilhação já passa dos limites, como na cena do supermercado e a da igreja. Essa cena da igreja, aliás, já seria suficiente para que Mikkelsen recebe-se todos os prêmios do mundo, já que o ator atinge a perfeição absoluta no choro contido do personagem que explode de uma maneira que ele não consegue segurar mais.

  E se Mikkelsen está genial, o ator que interpreta seu melhor amigo (cujo nome não sei, nem do ator e nem do personagem) está fascinante também, conseguindo criar um personagem extremamente complexo, envolvido em uma situação estressante e ambígua, e onde não sabe agir direito. Já a pequena Annika Wedderkopp também surpreende como Klara, já que, mesmo tão novinha, é perfeita e talentosa para interpretar uma personagem tão complexa e confusa como Klara.

  Enriquecido por uma fotografia genial de Charlotte Brus Cristensen, com seus ambientes frios e pouco convidativos, A Caça alcança status de quase uma obra prima pelo seu terceiro ato, onde Vinterberg não perdoa nem o espectador e nem seu protagonista, ou qualquer outro personagem, já que parece enxergar uma hipocrisia enorme no comportamento daqueles indivíduos, ao mesmo tempo em que encara de frente a mancha que, por contingências complexas, acabou transformando a vida de Lucas em um verdadeiro inferno.

Nota: 9.8/10.0

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