sábado, 23 de fevereiro de 2013



Crítica filme “Indomável Sonhadora” (Beasts Of The Southern Wild / 2012 / EUA) dir. Benh Zeitlin

por Lucas Wagner

  O olhar da criança sobre o mundo é algo interessante justamente por sua inocência. Mas o olhar de uma criança que vive sobre condições aversivas e perigosas, sempre temendo pela própria vida, é algo simplesmente extraordinário por vir repleto de ambivalência: a inocência é ameaçada pela realidade de uma forma que vai contribuir para que essa criança se torne um adulto duro e triste. Ainda assim, o mundo infantil é repleto de uma magia que serve como proteção da realidade, e assim, as crueldades desta vêm de certa forma sublimadas pela inocência, e essas crianças são capazes de tirar alguma beleza mesmo de um mundo onde não existe beleza. Crianças assim serviram de protagonistas muitas vezes no Cinema, produzindo obras admiráveis como O Labirinto do Fauno ou Moonrise Kingdom. Agora, em Indomável Sonhadora, acompanhamos uma garotinha de 6 anos que vive em péssimas condições e sem muitas perspectivas, mas que ainda consegue manter um pouco de sua infantilidade, mesmo que essa esteja sendo perdida mais e mais rápido.

  Hushpuppy (Quvenzhané Wallis) mora com o pai em uma comunidade pobre e isolada do resto do país por ser uma ilha e por ter uma barragem a impedindo de manter contato com o “mundo exterior”. Uma tempestade violenta faz com que a comunidade seja praticamente destruída e inundada, obrigando os seus moradores a juntarem forças para conseguir sobreviver. Para piorar a situação, o pai de Hushpuppy tem uma grave doença que o matará em breve, enquanto ela se sente como que culpada por acreditar que libertou monstros poderosos que se aproximam da região trazendo mais tragédia.

  Ao mesmo tempo em que é infantil e meiguinha, Hushpuppy é capaz de reflexões que, mesmo repletas de inocência e idealismo, são poéticas e representam certa maturidade da personagem, e isso consegue fazer com que a narração em off dela não seja uma recurso enfadonho como é em basicamente todo filme. Tratada pelo pai com dureza, inclusive vivendo em uma casa separada da dele e chamada por um sino para comer, Hushpuppy ainda ama o pai com força, mesmo que sonhe com uma vida onde a mãe ainda estivesse presente, algo que fica belamente demonstrado na direção de arte de sua casa: cheia de objetos da mãe, como se com isso a garotinha tentasse suprimir a falta dela. Mas ela não consegue imaginar uma vida sem o pai, e sofre quando começa a perceber a iminência da morte dele (“Você acha que eu sou cega?” diz ela em certo momento para ele, o que demonstra também que ela é mais madura do que parece). Esse maturidade também fica evidente quando o pai some por um tempo, e Hushpuppy, ao invés de se desesperar, mantém a calma e toma conta de si mesma. Afinal, num mundo como aquele, mesmo demonstre carinho e amor pela comunidade, Hushpuppy não pode se dar ao luxo de viver como uma criança “normal”, sempre brincando feliz e sorridente, já que ela deve ser forte e independente, sendo obrigada a sacrificar sua infantilidade por uma maturidade que ainda não existe, mas deve ser forçada. Assim, sua própria fantasia infantil (dos monstros que se aproximam da região) vem carregada de culpa e tragédia, assim como a fantasia esquizofrênica de Ofelia em O Labirinto do Fauno, já que as necessidades da realidade impedem que a inocência completa possa ser vivida. Desse modo, o arco dramático de Hushpuppy é o de se chegar à uma maturidade suficiente onde a ausência do pai não seja algo tão perturbador, e que ela possa aceitar essa partida como algo natural; assim, ela parece o filme inteiro estar vivendo um luto precoce pelo pai. Isso é extremamente trágico ao considerarmos que ela só tem 6 anos, e já deve aprender a ser tão forte para poder ser capaz de se colocar de pé em frente a natureza e assim sobreviver. Quvenzhané Wallis, como a intérprete da protagonista, surge como uma força da natureza ela mesma, conseguindo demonstrar toda a força da personagem, e há momento em que sua performance me encheram os olhos de lágrimas, quando ela parece a ponto de chorar diante das circunstâncias, mas segura porque isso seria errado e fraco. Ela só tem 6 anos. Ela só tem seis fucking anos!

  Wink, seu pai, também é um indivíduo ambíguo e complexo. Obrigando a filha a dividir a comida com os cachorros e também a morar numa casa sozinha, ela já parece um indivíduo antipático, mas muito dessa forma de cuidar da menina parece (por mais difícil que isso seja de se aceitar) amor. Amor porque o contrário disso seria iludi-la numa vida fácil e feliz, confortável, o que lhe traria grande decepção no futuro. Wink a trata como um adulto forte e independente, não permite que ela chore, lhe dá bebida alcoólica e até mesmo briga com ela se ela comer um caranguejo de forma civilizada, e não “como um animal”. Pode parecer (e é, na verdade) extremista, mas, num universo onde explodir um jacaré dá tesão, isso é perfeitamente natural e correto. Assim, Wink pode ser muito ambivalente (estar brincando com a filha para, logo depois, brigar com ela violentamente), mas é um personagem fascinante nesse amor bruto pela filha, e assim sabemos que a garota tem ótima criação, mesmo numa vida tão corrompida pela realidade.

  Ao invés da frieza e objetividade, o diretor Benh Zeitlin opta por uma direção sensível e doce. No entanto, nunca é meloso e maniqueísta como Bayona no fraco e açucarado O Impossível ou Spielberg em Lincoln. Zeitlin consegue o equilíbrio ideal, e consegue assim mostrar tanto a inocência quanto a dureza. Onde tudo parece improvisado e sujo, e o perigo parece sempre próximo, Zeitlin deixa claro que aquele é um universo extremamente aversivo; mas ainda assim o diretor mostra o carinho e companheirismo daqueles moradores, que encontram conforto nessas amizades e no desprezo pelo “mundo exterior”, e isso sem nunca ser artificial e remelento como Bayona em O Impossível. Mais interessante é como Zeitlin consegue extrair certa poesia de todo aquele mundo, sendo ajudado nisso pela bela fotografia, a narração de Hushpuppy e pela trilha sonora absolutamente maravilhosa (e injustamente deixada de lado no Oscar) de Dan Romer e Benh Zeitlin. Ainda por cima, o diretor consegue criar certos simbolismos que enriquecem demais seu filme, como os próprios monstros fantásticos, que chegam, em certo momento, a servir como correlatos das crianças da comunidade...e é maravilhoso o momento em que esses bichos se curvam à Hushpuppy.

  Mas o filme conta com um simbolismo mais complexo e lindo do que esse, que falarei agora, mas só para quem tiver visto o longa. Quem não tiver visto continue no próximo parágrafo. O simbolismo a que me refiro é quando Hushpuppy vai até o bordel chamado Eliseu e lá consegue forças para voltar ao seu pai e aceitar a sua morte. Eliseu, o lugar para onde iam os mortos na mitologia grega. É como se ela fosse até a terra dos mortos, lá encontrando uma espécie de substituta para a mãe (que, simbolicamente, é a sua mãe, o que fica claro pela própria voz e aparência da prostituta, e por uma fala em específico), que lhe dá a força necessária para amadurecer de vez e deixar o pai ir embora. Assim, não é tão absurdo imaginarmos que, talvez, apenas talvez, Hushpuppy não se torne uma adulta fria e triste no futuro, mas uma mulher sábia capaz de enxergar beleza e poesia nas mais ínfimas coisas, compreendendo que existem coisas que não podemos mudar, mas que podemos ter maturidade suficiente para aceitá-las sem que elas nos destruam.

  Doce, sensível, comovente, bonito e poderoso, Indomável Sonhadora é daqueles filmes que nos atingem profundamente nas nossas entranhas, ficando conosco mesmo que ainda não o tenhamos digerido totalmente. Um filme que merece ser visto e revisto, apreciado e sentido.

Nota: 10.0 / 10.0


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