sexta-feira, 6 de setembro de 2013



Crítica Amor Pleno (To The Wonder / 2013 / EUA) dir. Terrence Malick

por Lucas Wagner

  Terrence Malick é um filósofo que escreve através de imagens, guiando com certa ternura o espectador através de reflexões íntimas e profundas, imprimindo uma visão de mundo que eleva a Natureza a um grau de graça divina enquanto enxerga o mundo criado e pensado pelo Homem como inerentemente cruel. Com esse pensamento, o cineasta produz várias e várias horas de material filmado, buscando captar a essência de seus pensamentos através de imagens específicas que nos incitam ideias e pensamentos. Como não poderia deixar de ser, ele se vê obrigado a abrir mão de muito desse material na sala de edição, num processo de montagem que chega a durar anos, para que o diretor possa refinar e encontrar as imagens que contenham a essência de tudo que ele queria passar. Geralmente o cineasta é bem sucedido, só que nesse seu novo longa, Amor Pleno, ele parece não ter conseguido abrir mão de certo material que, no fim das contas, acaba atrapalhando a estrutura e a narrativa. Ainda assim, esse seu novo filme é uma obra sensível e competente na qual o cineasta busca mergulhar em si mesmo e nos complexos mistérios do Amor.

  Baseando-se muito em sua própria história de vida, Malick relembra seus relacionamentos amorosos e a época em que morou em Paris, criando no personagem vivido por Ben Afleck, Neil, uma espécie de alter ego seu. E assim acompanhamos a trajetória da paixão de Neil com Marina (Olga Kurylenko), desde Paris até que se mudaram para os EUA, onde ele, vendo seu relacionamento decair, se reapaixona por uma antiga paixão de juventude, Jane (Rachel McAdams).

  Durante todo o filme, me lembrei de uma citação do filósofo francês Edgar Morin: “Um amor nascente inunda o mundo de poesia, um amor duradouro irriga de poesia a vida cotidiana; o fim de um amor devolve-nos à prosa”. Pois não é se não justamente nisso que Malick mergulha no seu projeto, descrevendo o Amor com uma delicadeza tocante, ao mesmo tempo em que não deixa de procurar suas contrariedades. Afinal, até a mais ardente das paixões tende a esfriar, e muitas vezes isso nem acontece por alguma razão específica, mas simplesmente como algo natural. É algo completamente irracional, mas que é um fato indiscutível. Malick então busca retratar o Amor como um movimento dialético, traduzindo isso visualmente na criação de uma mise en scène (movimentação e posicionamento de atores em cena) onde o ator e a atriz se aproximam e se afastam como se numa dança constante. Aliás, é revelador que a água seja um elemento constantemente enfocado pelo diretor, já que a instabilidade de seu estado líquido remete diretamente à instabilidade emocional de um relacionamento, enquanto ainda é lindo que o diretor crie um plano onde água do mar preenche buracos na areia, o que é revelador depois de uma fala de Marina que envolve o desejo de ter Neil dentro de si, como o Amor sendo um constante “um no outro”. E não é a toa também que o único momento em que vemos água em paz, calma, seja quando parece que o fim definitivo do relacionamento foi alcançado.

  Como sempre, a Natureza é exaltada por Malick na relação que ele cria entre essa e a paixão romântica. Neil e Marina brincam em campos abertos e na presença de flores, enquanto o mesmo Neil se encontra em um momento de profunda paz com Jane enquanto sentados em um carro cercados por animais selvagens. Já a tecnologia e construções modernas representam o material tóxico que envenena os personagens. E assim é bastante revelador que os momentos em que Neil começa a se distanciar de Marina sejam ilustrados por um trabalho de reforma em um bairro, que culmina na destruição da prosaica beleza desse ambiente, ao mesmo tempo em que uma espécie de piche resultante da reforma adoece as pessoas do bairro. Nesse ambiente destruído, enxergamos Neil ao lado de poderosas máquinas de perfuração. E ainda, quando sozinha novamente, Marina caminha pelas ruas modernas de Paris, enquanto caminhava por campos naturais na época que estava com Neil. Dentro dessa mesma perspectiva, Malick volta a retratar a Mulher como um ser angelical em conexão com a Natureza*, e Marina aparece várias vezes deitando em plantações, correndo descalça e até mesmo bebendo água da chuva em galhos de árvore, enquanto Jane ainda aparece como dona de um rancho decadente e que nutre amor pelos animais. Ao passo que o homem, como de praxe na filmografia de Malick, é um ser frio e sombrio**, algo que o diretor ressalta ao deixar Neil constantemente fora de enquadramento, não raro evitando o rosto de Ben Afleck, dando-lhe um aspecto mais ameaçador, assim como quando o cineasta mergulha o ator em sombras (e a conexão de Neil com a tecnologia, através de seu emprego e de seu potente carro, ressaltam o tom de ameaça masculina).

  E assim é que Amor Pleno parece não ser mais “apenas” um filme sobre a complexidade dos relacionamentos e se torna quase que uma imolação de Malick à si mesmo. Neil procurando apoio na religião depois de seu romance com Marina é uma forma dele tentar se purificar depois de seus atos. Mas essa subjetividade do diretor, se por um lado enriquece a obra, também a enfraquece pelo certo exagero na imagem de salvação divina buscada por Neil (e por Malick) pelo perdão de seus erros, como se fosse só dele a culpa pelo fracasso do relacionamento, algo que é uma mentira facilmente percebida pelo espectador. Claramente o diretor se culpa pelo fracasso de seus próprios relacionamentos.

  Mas esse não é o problema mais grave do filme. Malick filmou materiais envolvendo o padre Quintana (Javier Bardem) em sua crise de fé. Há momentos de valor nessas cenas, principalmente pelo fato de Malick insistir em filmar o padre em planos mais abertos (ressaltando o seu vazio existencial) e através de vidros, às vezes coberto por sombras, e (o que é mais admirável) pela mensagem que o diretor busca passar através da figura do empregado humilde que em certo momento conversa com o padre, encontrando espiritualidade na mais frívola das coisas: o calor da luz em sua mão. Ou seja: não se encontra Deus em coisas grandiosas, mas naquelas mais simples e despercebidas (me lembrei do clássico O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman). Mas mesmo isso não acaba com a sensação de que estamos acompanhando uma subtrama mal estruturada e que não encontra espaço dentro de um maior contexto temático da obra. O que é ainda mais irritante (além do modo mal resolvido em que essa subtrama acaba) é perceber o desespero de Malick em encontrar uma forma de transitar entre a trama principal com essa, numa forma chula que envolve narrações do padre falando de amor e logo abandonando esse discurso para focar em seus problemas, ou ainda (a pior de todas) quando vemos recém-casados virados de costas e temos, por um momento, o pensamento de que talvez seja Neil e Marina, o que bem sabemos ser uma mentira pela cena que veio logo antes dessa.

  Se essa desestrutura e certa falta de disciplina por parte de Malick prejudicam bastante Amor Pleno, o fato é que o diretor aqui demonstra com toda a força a sua fama como poeta visual ao dizer muito através de imagens prosaicas, como a sombra de Marina em uma parede com desenhos mitológicos, representando o caráter de magia que é o amor nascente que está vivendo com Neil, ou ainda quando os vemos em uma igreja, se abraçando e se beijando, numa clara representação da sacralidade com que Malick enxerga o Amor. Além disso, é de verter lágrimas o momento em que, depois de uma briga, Marina e Neil catam cacos de objetos quebrados, numa representação clara da tentativa fútil dos dois de uma reconstrução do amor que um dia viveram. Aliás, Amor Pleno, como a maioria dos filmes de Malick, poderia ter um livro escrito apenas falando da significação genial dos diversos elementos visuais que fazem desta obra um longa extremamente complexo e sensível, quando imagens prosaicas como Neil, cercado de sombras, olhando através de um vidro a mulher e a enteada brincando numa sala iluminada adquire tamanho sentido, ou ainda Neil ter reencontrado Jane num período em que seu rancho estava todo falido. E, para citar sem explorar devidamente, vale ressaltar as belíssimas performances das lindas Olga Kurylenko e Rachel McAdams, por construírem (em especial a primeira) personagens femininas com tamanha complexidade emocional, representando bem os anjos amorosos e ambíguos que Malick criou.

  E é assim que, mesmo que não seja inesquecível e maravilhoso como A Árvore da Vida ou Além da Linha Vermelha, Amor Pleno comprova Terrence Malick como um dos cineastas mais fascinantes que já existiu, ao encontrar as maiores das belezas e as mais profundas emoções em imagens tão, a primeira vista, comuns. E não é assim que é a poesia do cotidiano em que vivemos mergulhados?

*Mulheres em ligação com a Natureza na filmografia de Malick: Sissy Spacek em Badlands, Miranda Otto em Além da Linha Vermelha, Q’Orianka Kicher em O Novo Mundo, Jessica Chastain em A Árvore da Vida.

**Homens em ligação com o técnico na filmografia de Malick: Martin Sheen em Badlands, Brad Pitt em A Árvore da Vida.

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