segunda-feira, 21 de outubro de 2013


Crítica Os Suspeitos (Prisoners / 2013 / EUA) dir. Denis Villeneuve

por Lucas Wagner

  Como o maravilhoso Sobre Meninos e Lobos, de Clint Eastwood, e como o jogo de PS3 Heavy Rain, esse Prisoners (me nego a usar o título nacional) é um suspense policial que possui em seu cerne dilemas morais, trabalhados em cima de uma trama que envolve investigação e o comportamento de pais desesperados com a ausência de seus filhos. Com base nisso, o cineasta canadense Denis Villeneuve cria um suspense pesado em seu tom melancólico, visando mais a psicologia de seus personagens do que perseguições e violência.

  O roteiro de Aaron Guzikowski trabalha com o sumiço de duas garotinhas durante o jantar de Ação de Graças. O pai de uma delas, Keller Dove (Hugh Jackman) começa a ficar insatisfeito com o trabalho da polícia, nas mãos do detetive Loki (Jake Gylenhaal), e decide que a justiça será feita mais rapidamente se por suas próprias mãos.

  Muitos espectadores imaturos poderiam se irritar com a calma do longa, mas esse é justamente um dos acertos do projeto, já que o diretor Villeneuve foca suas forças em desenvolver uma atmosfera de intensa opressão e melancolia. A opção por ambientar o longa no período do inverno se dá justamente para que o clima e a geografia dominadas pela neve possam corroborar para a construção do constante estado de tristeza da obra; e assim, chuva forte vem em momentos chave para poder representar a catástrofe emocional que os personagens estão vivendo (e o uso de tal fenômeno como elemento simbólico realça ainda mais a semelhança do projeto com o supracitado Heavy Rain).

   A direção de fotografia assinada pelo gênio Roger Deakins (junto com Emmanuel Lubezki, o melhor em atividade) busca sempre trabalhar com uma paleta de cores frias e tristes, usando muito o marrom, o branco e o cinza para isso. Também o jogo de sombras promovido por Deakins é essencial por ressaltar o lado sombrio que vai surgindo naqueles personagens. O figurino e a direção de arte seguem a mesma lógica melancólica, sendo ajudados pela trilha sonora de Jóhann Jóhannsson que usa o violino, violoncelo e o órgão de maneira evocativa.

  Marcada por um minimalismo absoluto, a direção de Villeneuve voluntariamente corre daquilo que seria mais esperado. Assim, cenas que trariam elementos já batidos dos suspenses (como um policial descobrindo uma vítima) são delicadamente passados por cima através do uso de fade outs, como se o diretor dissesse: “o filme já está longo demais, portanto vamos ao que realmente importa?”. Esse minimalismo também fica evidente na economia com que o diretor transmite informações valiosas para a compreensão dos personagens, como a foto de jornal que fala sobre o suicídio do pai de um deles, ou as tatuagens que Loki trás em seu pescoço e na mão.

  Villeneuve parece mais focado é na sutileza da composição de quadros que surgem evocativos por si só, já que constroem atmosferas perfeitas apenas com o posicionamento de câmera, seja inclinando-a ou posicionando de determinada forma no ambiente que transmita noção de claustrofobia. E também não há como não admirar a habilidade de Villeneuve e Deakins numa sequência quase transcendental em que acompanhamos um carro (cujo motorista está ferido e perdendo consciência) em alta velocidade indo para o hospital, e em que as luzes do tráfego surgem fortes e brilhantes, numa representação ideal do estado mental do motorista na hora.

  Prisoners carrega em si uma carga religiosa, mais notadamente católica. O longa se inicia com uma oração, e em diversos quadros podemos vislumbrar cruzes, além do fato de Loki ter em sua mão uma tatuagem em forma de cruz. Mais acurado talvez fosse dizer que a obra possui caráter de culpa católica (só que sem o vermelho característico de Scorsese, cujas obras giram em torno do tema). Aquele universo opressivo é marcado por indivíduos que, na busca por fazer o bem e viver uma vida saudável e correta, se desviaram violentamente do curso (inclusive um padre), e assim, é sintomático que em certo momento um personagem não consiga terminar a oração do Pai-Nosso, mais especificamente a parte que envolve “perdoar aos outros como perdoamos aqueles que nos tem ofendido”.

  E é por isso que defendo tanto o título original do filme, que fala de Prisioneiros e não de Suspeitos. Todos aqueles indivíduos criaram prisões para si mesmos. Suas crenças baseadas em bondade e amor no fim são sabotadas pelo destino ou por pessoas cujo destino foi destruído pelo acaso, e assim se prendem em estados emocionais ou comportamentos que beiram a patologia. Chega a ser irônico que tenha acontecido tal incidente trágico contra Keller, cujo lema era sempre “Reze pelo melhor; se prepare para o pior”. E assim, essas pessoas vão mergulhando em labirintos infinitos, se perdendo cada vez mais na busca por encontrar a si mesmos ou ao menos uma ordem para o caos de tudo ao redor (não é atoa que o labirinto surja também como símbolo concreto na trama).

  Pois não é senão em um intricado conflito moral aquele em que vivem os prisioneiros do filme. O que faria um ser humano como nós naquelas condições? Até que ponto seríamos capazes de ir para salvar alguém que amamos? Para lutar pelo que acreditamos? Mais importante: até que ponto poderíamos responder essas perguntas e não trair a nós mesmos?

  Massacrados por essas questões, os personagens de Prisoners vão se tornando cascas de carne do que um dia foram humanos. Contando com um elenco primoroso, é uma pena, no entanto, que os realizadores não tenham conseguido tirar o maior proveito deles. Quem mais sai prejudicado são Viola Davis e Maria Bello, presas em personagens que não encontram muito espaço para desenvolvimento (embora a segunda protagonize uma tocante cena em que entra em confusão psíquica diante da dor e incerteza). Terrence Howard e Melissa Leo, no entanto, conseguem extrair o máximo de seus papeis, com o primeiro trabalhando bem a confusão volitiva de Franklin, ao passo que Leo está simplesmente aterradora como Holly Jones.

  Hugh Jackman e Jake Gyllenhaal, no entanto, são os maiores (dentro os já vários citados!) trunfos de Prisoners. Jackman demonstra entrega total ao papel de Keller, e cria um indivíduo complexo e trágico cuja própria vida seguindo regras e um código moral firme traduz amor pelos filhos e uma preocupação em fazer o certo e estar preparado sempre. E é por isso que o arco dramático do personagem é tão trágico, pois as contingências que o controlam vão espremendo-o até limites inimagináveis. Jackman, sempre competente, não permite que Keller, por causa de seus estouros de raiva, se torne um personagem meramente assustador; suas convicções são reais e sua determinação, tocante. Não há prazer nos atos de Keller, apenas pura dor. E assim, Jackman merece aplausos por um momento em que derrama uma lágrima solitária, como sinal de um pequeno alívio de Keller depois de muita luta.

  Já o detetive Loki é o personagem mais complexo e fascinante do filme. Não graças ao roteiro, já que, nesse ponto, este erra ao não explorar as particularidades da personalidade de Loki, já que sempre o foca no trabalho, e dá poucas informações sobre seu passado (embora dê uma valiosa, de maneira rápida que pode passar despercebida, na cena em que agride o padre). Mas Gylenhaal e Villenevue sabem guiar Loki para a perfeição. Percebam como Villenevue parece filmar diversas vezes o investigador de costas olhando alguma coisa (inclusive é o modo como o apresenta). Tal estratégia pode ser para ressaltar (simbolicamente) a determinação do policial, já que o enfoca dirigindo-se à alguma coisa, algum objetivo. As tatuagens são também reveladoras por conter carácteres religiosos, pegando elementos do cristianismo, e o octagrama no pescoço que é sinal de esperança em diversas crenças. Essas tatuagens também podem ressaltar um caráter de rebeldia contida no personagem.

  Com isso, Gylenhaal entrega um de seus melhores trabalhos de sua já tão admirável carreira. O Loki de Gylenhaal é um sujeito honesto cujo maior defeito seja talvez se entregar demais ao que faz, envolvendo-se emocionalmente com seu trabalho (algo que pode ter origem na sua infância, como fica claro no ato falho da fala que diz ao padre). Apesar da aparente calma, Loki é um indivíduo com certa fúria e raiva dentro de si, algo que busca guardar o máximo possível mas que pode escapar de forma total (observem o momento em que interroga Alex) ou através de sinais psicossomáticos como o constante tique nervoso de piscar os olhos (detalhe sublime da atuação de Gylenhaal). O modo como responde à agressividade alheia também revela um ponto passivo-agressivo ao, mesmo aturando os estouros de Keller, o fazer carregando um sorriso no rosto, um sorriso de certo desafio (outro toque de genialidade de Gylenhaal). Ainda assim, Loki é um bom homem, que se dedica de corpo e alma ao que faz e que por isso mesmo se perde em seu próprio labirinto, num personagem fascinante que em muito lembra o detetive Park Doo-man do belo Memórias de um Assassino, de Bong Joon-ho, ou até mesmo Robert (interpretado pelo próprio Gylenhaal) em Zodíaco, de David Fincher.

  Prisoners ainda entrega uma resolução absolutamente impecável e repleta de ironia dramática, apesar de que, logo que terminei de ver o filme, quase descartei sua profundidade como “viagem” minha. Porém, não poderia terminar de escrever uma crítica sobre essa obra sem falar disso, portanto, quem não viu o filme, pule para o próximo parágrafo, pois aqui vem spoilers: Keller ficou preso no calabouço de Holly, e inevitavelmente morrerá (sem comida, água e com a perna quebrada e sangrando), num símbolo do clímax de sua loucura, já que, de tanto se trair, o fim do personagem foi justamente o de confrontar seus próprios demônios e abraçar sua tragédia, se tornando literalmente um prisioneiro. Assim, quando Loki escuta o assobio distante e fantasmagórico do apito de Keller, escuta também o chamado de um fantasma, fantasma esse que vai assombrá-lo pelo resto de sua vida, e ele bem sabe disso, já que essa é a sua própria prisão.


  Com um roteiro competente de Guzikowski (apesar de martelar algumas pistas óbvias, como o sonho com o apito), Prisoners é um longa policial muito diferente da maioria de hoje em dia: maduro, desafiador e emocionalmente complexo. E por isso mesmo merece um lugar como uma das obras mais importantes do ano.

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