quinta-feira, 5 de dezembro de 2013


Análise:


Jogos Vorazes: Em Chamas (The Hunger Games: Catching Fire / 2013 / EUA) dir. Francis Lawrence


por Lucas Wagner


Construindo uma complexa e intrigante metáfora de uma sociedade hedocapitalista, vazia e manipuladora que poderia muito bem representar um futuro para a humanidade atual, Jogos Vorazes apresentava-se como uma obra mais ambiciosa do que a maioria dos blockbusters que lotam os cinemas todos os anos. Assim, era uma pena que a qualidade do longa despencasse tanto a partir do momento em que os referidos jogos de fato começavam, já que os realizadores então se perderam em um emaranhado de contradições e situações mal explicadas, sem contar o patético romance entre Katniss e Peeta. Felizmente, essa segunda parte da saga se revela uma obra indubitavelmente superior e mais sóbria, que expande com eficácia o teor critico desse universo.

Começando bem ao esclarecer que o romance entre Katniss e Peeta não passava de uma farsa para que ambos conseguissem sair vivos dos jogos, Em Chamas consegue um bom balanceamento no trabalho de suas metáforas, personagens, e da mitologia criada nos livros de Suzanne Collins (que não li), demonstrando notável calma no desenvolvimento da trama, que em nenhum momento sofre com o afobamento típico de grandes produções que querem pular logo para a ação. Ainda assim, é infeliz, porém necessário ressaltar que os roteiristas Simon Beaufoy e Michael Arndt pecam gravemente no desenvolvimento do romance (desta vez, de verdade) entre Katniss e Peeta, já que não encontram uma maneira adequada de inseri-lo de maneira suave na trama, mas sim o colocam de maneira afobada numa montagem do tour dos dois personagens pelos Distritos. A consequência é que, apesar de entendermos racionalmente a aproximação dos dois, nos sentimos desconectados pela forma abrupta com que é desenvolvido.

Mas se isso prejudica o filme, Em Chamas possui atrativo maior ao se focar nas metáforas envolvendo o funcionamento dos bastidores da sociedade hedocapitalista apresentada. O casal Peeta e Katniss, tendo vencido os jogos anteriores e se tornado queridos pelo público, se tornaram um valioso peão para os poderosos usarem no controle das massas. Se Katniss se tornou sinal de esperança na luta contra a opressão, o plano é criar uma imagem dela como apoiadora da Capital, numa estratégia de desinformação perfeitamente cabível na realidade. Aliás, as formas de controle da Capital vão se tornando cada vez mais explícitas e, ao menor sinal de desordem, soldados (sob ordem militar) não hesitam em assassinar e/ou torturar cidadãos (e um ponto em que o filme merece créditos é por não evitar mostrar essas cenas).

Mais rica se torna a obra se a colocarmos no contexto dos estudos do sociólogo Zygmunt Bauman, que, ao discorrer sobre os efeitos da globalização, comenta que as sociedades de Terceiro Mundo, que sofrem com a falta de recursos tecnológicos e com pobreza, se tornaram espécies de bases sobre as quais se erguem as sociedades de Primeiro Mundo, que se reconfortam ao vislumbrar o Terceiro Mundo sofrendo com a miséria. Em Jogos Vorazes, o Terceiro Mundo é representado pelos Distritos, e o Primeiro Mundo é Panem, a Capital. Capital essa que, como países do tipo EUA, Inglaterra, França, Japão, etc, apresentam uma monodisposição para uma vivência voltada para o prazer, onde o consumismo exagerado é a chave para a felicidade, que só pode ser alcançada através de experiências máximas/orgásticas. Se no primeiro filme, tais elementos da sociologia de Bauman já haviam sido bem explorados, aqui voltam a receber atenção, seja em grandes detalhes (como os figurinos exagerados, as enormes e espalhafatosas construções de Panem, representando um ápice de uma sociedade do glamour/prazerosa/orgástica) ou nos mais sutis (a bebida que faz com que a pessoa vomite, para que possa comer mais, alcançando maior prazer). Assim, Jogos Vorazes se torna uma distopia difícil de contradizer como possível profecia.

Grata surpresa em Em Chamas é também perceber como esse acerta onde o anterior mais errou: os jogos. Aqui, finalmente a sensação de perigo é palpável e constante, e durante todo o tempo em que estão jogando, tememos pelo destino dos heróis. Os perigos são mais intensos, atingindo os jogadores tanto física quanto psiquicamente. E mais interessante ainda é como é ampliada a mitologia da série no contexto psicológico: os traumas causados pelos jogos são cicatrizes que assombram os Vencedores, que em nada se sentem honrados por terem sido vitoriosos, e aqui se enraivecem por terem que competir de novo. Muito mais preocupados em sobreviver e em estabelecer laços do que em necessariamente matar e vencer, os Vencedores passam por todo o processo de exibição para a mídia e treinamento de forma automática, compartilhando entre si as dores e tristezas advindos dos jogos. Assim, Em Chamas ganha um caráter ainda mais melancólico que o anterior, ressaltado pela direção de Francis Lawrence (do ótimo Eu Sou a Lenda) em planos que transmitem tristeza e uma sensação apocalíptica. Ainda assim, é importante notar que Lawrence não trás nada de novo em relação ao trabalho de Gary Ross no primeiro filme, e que ainda não se utiliza de recursos tão interessantes como o seu predecessor usou.

Encabeçando com maestria habitual um elenco soberbo, Jennifer Lawrence transforma Katniss numa protagonista ainda mais complexa. Mulher forte e independente, a moça ainda apresenta um lado mais sensível e sinceramente ferido por suas experiências nos jogos, e por isso busca certo isolamento no silêncio de florestas. Katniss se torna mais fascinante por, mesmo indignada com os abusos da Capital, não agir como uma protagonista clichê e irritante guiada por princípios abstratos de “certo” e “errado”, mas sim agir de acordo com o instinto de sobrevivência, até mesmo abaixando a cabeça para o presidente Snow quando isso é o mais sensato a se fazer. Assim, Lawrence vai trabalhando o lado duro e o lado sensível de Katniss de modo que possamos perceber quando a necessidade de uma Revolução passa ser visto em primeiro plano por ela.

Joss Hutcherson continua fazendo de Peeta um personagem tocante e tridimensional, e o veterano Donald Sutherland aposta na frieza para interpretar o vilão, presidente Snow. Infelizmente, Sutherland acaba sofrendo com problemas no roteiro (e no livro?) que vai acabando com o personagem quanto mais esse parece mostrar ter alguma rixa pessoal com Katniss, perdendo a sobriedade que o fazia tão ameaçador. Esse papel acaba sendo muito melhor representado pelo gênio Phillip Seymour Hoffman (um dos melhores atores vivo) na pele de Plutarch Heavensbee, um homem ambíguo, frio, calculista e que se torna um vilão muito mais satisfatório (pelo menos durante a maior parte da projeção).

A franquia Jogos Vorazes como um todo pode sofrer de diversos problemas narrativos que lhe tira um pouco da força, mas esse Em Chamas consegue coloca-la de volta aos trilhos de onde tinha descarrilhado, aproveitando muito de seu (enorme) potencial. E o gosto de “quero mais” que fica nos espectadores quando a obra encerra é evidência suficiente de que as expectativas para a última parte da saga já estão notavelmente altas.


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