sexta-feira, 11 de abril de 2014


Análise:

Até o Fim (All is Lost / 2013 / EUA) dir. JC Chandor

por Lucas Wagner

O mar exerce um efeito fascinante sobre o ser humano ao demonstrar simultaneamente uma beleza de tirar o fôlego e uma selvageria que ignora qualquer ato de bondade de uma vida, já que o mar não segue as regras dos Homens, mas da Natureza, tão bela e furiosa como sempre foi. Não é a toa que o mar tenha influenciado significantemente tantos poetas, pintores, romancistas e cineastas. Ernest Hemingway, Jack London e Joseph Conrad já criaram narrativas profundas que usavam o mar como metáfora para a Existência, e o cineasta Chris Eyre usou-o de forma discreta para filmar a recuperação de um homem depois de uma tragédia no belo Hide Away

Em Até o Fim, novo filme escrito e dirigido por JC Chandor, a trama de um homem velho tentando sobreviver à fúria do oceano em que navega só é simples em teoria, já que carrega em si uma profundidade emocional que o aproxima de obras como Gravidade ou O Velho e o Mar (sim, o livro), quando usa o meio externo para falar sobre o meio interno. Grande parte dessa força emocional fica a cargo da maravilhosa atuação de Robert Redford, num dos melhores desempenhos de uma carreira já tão fascinante.

Pois, apesar de profundo, Até o Fim não conta com arroubos emocionais que forçam o espectador a chorar. Pelo contrário, já que durante boa parte da narrativa, sem praticamente nenhuma fala, o roteiro de Chandor parece dedicar-se a um cuidadoso estudo comportamental do protagonista sem nome ou identidade. Se sentimos que o conhecemos profundamente é a partir da atenção cuidadosa do diretor e do ator aos detalhes das ações realizadas pelo homem.

Ao ser surpreendido pelo container à deriva no início da projeção, o homem não entra em desespero nem começa a xingar, nem mesmo faz cara feia. Apenas encontra maneiras (comuns ou improvisadas) para consertar o estrago, e a calma com que Chandor filma os dois dias em que o protagonista passa investindo nessa atividade é essencial para que compreendamos bastante sobre a personalidade resiliente e serena dele. É curioso, também, como ele é uma figura absolutamente respeitável, digna e um exemplo de pessoa, e se isso é um viés pessoal meu, vocês me perdoem. Mas ele sempre parece lutar pacificamente, nunca desistindo e nem reclamando, o que é uma virtude que vem com anos de trabalho duro e muito sofrimento. Observem, por exemplo, quando parece aceitar que seu rádio pifou de vez. O que ele faz? Senta-se num sofá, pega seus óculos e começa a ler um livro sobre navegação a partir de estrelas. Como não admirar? Ou ainda, quando percebe a tempestade se aproximando, ele começa a guardar seus pertences e armazenar água, e depois faz a barba, talvez por saber que poderá ficar muito tempo sem poder fazer de novo.

E é por ser tão sereno e resiliente que o momento em que finalmente entra em desespero e se entrega a fadiga, à raiva e à melancolia (nunca de forma exagerada, no entanto) se torna tão trágico e atinja tanto o espectador. Pois, diferente do que vemos em muitos filmes, Até o Fim tem a grande virtude de permitir que nós sintamos a fadiga do personagem, o tanto que ele lutou e torcer por ele, não por conhecê-lo profundamente, mas por estarmos presenciando seu sofrimento de uma posição insuportavelmente confortável. E nem o conhecemos tanto assim, mas recebemos dicas que apenas insinuam um oceano de dores e frustrações, algo que aproxima o filme de outro maravilhoso exemplo de minimalismo, o lindo Las Acacias.

Observem a aliança do personagem, ou mesmo o sugestivo nome de seu barco (Virginia Jean). Além disso, o filme abre com a narração em off de uma carta repleta de remorso, culpa e desculpas. O que será que aconteceu com ele? Na verdade, não importa. A falta de identidade que lhe é conferida é talvez uma forma de respeito dos realizadores que o torna ainda mais intrigante. Diferente do que ocorreu no citado Hide Away, aqui não foi cometido o erro de justificar o sofrimento do personagem. O por quê de sua possível procura por solidão no meio no mar não é assunto nosso para saber. Só podemos supor maiores detalhes a partir de pequenos gestos de Redford, como ao ignorar (aparentemente com resquícios de raiva) uma carta que encontra dentro de uma caixa. Além disso, é visível que o barco contém alguma significância emocional para o personagem, e isso fica evidente em sua relutância abandoná-lo, criando desculpas para voltar a bordo ou pelo melancólico último olhar que lança a ele.

Aliás, sinto que falei muito mas pouco de Redford. O caso é que, desde sua escalação (para aproximar o espectador de um personagem do qual nem teríamos como nos identificar, à primeira vista) até alguns dos microdetalhes por ele usados, são sinais de genialidade. Observem sua primeira fala no filme, quando vai tentar falar no rádio: ele engasga e a voz sai com dificuldade, numa ilustração do comportamento de ficar em silêncio e sozinho durante muito tempo. Ele confere uma dimensão humana essencial para o filme, e suas linhas de expressão e suas mãos calejadas também são histórias dentro de seu personagem. Histórias que nunca ficaremos sabendo, pois o que importa não é o que o levou ao isolamento, mas o fato de estar isolado.

A solidão é a maior constante em Até o Fim, seja numa condição auto-imposta ou imposta pela situação em que o homem se encontra. Chandor ressalta esse sentimento em planos abertos em que vemos Redford isolado em meio à imensidão do oceano, ou ainda pela linda e dolorosa trilha sonora de Alexander Ebert, essencial para evocar um aperto no peito e um estado de tristeza.

Mas o filme não é apenas sobre tragédia, e sim principalmente sobre a luta primordial entre Homem e Natureza. Não é gratuita a comparação que fiz com O Velho e o Mar, ainda mais porque o próprio Chandor a ressalta de maneira bastante direta quando um tubarão “rouba” a pesca do protagonista, cena esta que ecoa passagens literais do livro. Tanto no romance de Hemingway como no filme de Chandor, acompanhamos sofridos homens envelhecidos em combate direto com a Natureza, usando todo o seu reservatório de forças (físicas e psicológicas) para manter-se de pé e digno. E por mais que a Natureza seja bela e grandiosa demais para um ser tão diminuto e insignificante como o Homem (como o diretor reforça nas lindas filmagens submarinas envolvendo peixes e diversos outros seres aquáticos, completamente ignorantes quanto ao sofrimento de seu colega de planeta alguns metros acima), este último ainda merece louvores pela capacidade de resistência que consegue demonstrar, mesmo que muitas vezes seja vencido numa derrota vergonhosa, como Hemingway mostrou.

Eficaz ainda no realismo e inventividade das improvisações do protagonista (como o modo de arrumar água potável) e tocante em seus momentos mais intimistas, Até o Fim é um filme de sobrevivência que diz muito em diversas camadas. A fragilidade e a tenacidade do ser humano se misturam num perfeito exemplo dessa malfadada espécie, onde todos os caminhos traçados por suas profundas rugas levam a oceanos indomados que se chocam com a brutalidade da Natureza, para a qual nada tão pequeno como um homem fica no caminho de sua força. Mas que vai ter uma luta bonita, isso vai. Injusta, mas bela.

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