segunda-feira, 18 de agosto de 2014


Análise:

Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa (Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa / 2014 / Brasil) dir. Gustavo Galvão

por Lucas Wagner

Aos 38 anos de idade, o cineasta Gustavo Galvão demonstra nesse seu filme, Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa, ser um homem, acima de tudo, envelhecido. Reparem que não disse maduro. Ser maduro vai além de enxergar com clareza as desgraças do mundo e a falta de sentido da vida. Ser uma pessoa envelhecida significa algo mais próximo de ter essa clareza de visão, porém não enxergando algo além dela, as belezas inerentes da vida e do viver. Isso não impede que se aprecie a inteligência da visão de Galvão nesse seu trabalho, que, num cinismo e niilismo palpáveis, entrega uma obra racional quanto às suas perspectivas.

Escrito por Galvão ao lado de Cristiane Oliveira e Bernardo Scartezini, o filme narra a história de Pedro (Vinícius Ferreira), homem de aparente meia idade que larga toda sua vida em Brasília para pegar a estrada, usando nada além da roupa do corpo. No caminho, conhece Lucas (Marat Descartes), homem mais velho cuja vida sem qualquer rumo constitui para si uma fonte de alegria. Juntos, passam a buscar experiências caóticas e intensas.

Começando a narrativa in media res (no meio da ação), Galvão demonstra já sua perspicácia e domínio de conteúdo ao, posteriormente, nos surpreender apresentando uma estrutura circular que muito diz sobre os personagens e a temática da obra. Pois, apesar da sinopse passar uma impressão de possuir um cunho carpe diem, a visão que Galvão tem desse universo passa muito longe. Como a dissonante trilha de cordas de Ivo Perelman constantemente busca ressaltar ao atribuir uma atmosfera expressionista ao filme, ou ainda como a fotografia estourada e crua de André Carvalheira também procura, Uma Dose Violenta... se passa num mundo evidentemente aversivo e desconfortável, não importa se estamos vendo cenas em Brasília ou em ambientes de um submundo à beira de estrada.

A começar por aquele universo criado para representar Brasília e seus habitantes. Carvalheira mais uma vez acerta nas imagens assépticas que usa na cidade, representando uma ideia de conformidade nos ambientes cinzas e impessoais, com uma notável falta de emoção e cor que nos permite compreender porque Pedro quis tanto escapar de lá. Longe do ideal de uma vida controlada e satisfatória, essas pessoas típicas de classe média lá vivem com um cenho constantemente franzido e sorrisos, quando existem, enferrujados. A própria falta de sentido dessas vidas fica clara pelo mormaço evidente na relação de Pedro e a irmã, a quem é afirmado, em certo momento, que antes do desaparecimento do irmão, os dois basicamente não tinham relação alguma. O próprio caos que geralmente guia os sentimentos cotidianos, impedindo os mais inteligentes de nós de fazer sentido concreto dos acontecimentos, fica ainda mostrado na melancolia da falta de resposta da ex-namorada (ou esposa) de Pedro quando indagada por que os dois separaram, se antes se davam tão bem. Num universo como esse, é compreensível que Pedro não tenha se sentido seguro para explorar seus potenciais poéticos ou ao menos expô-los ao seu meio social, e assim pareça tão surpreendente para seus parentes que o rapaz ao menos se interessasse pela arte.

E se mesmo aquelas pessoas basicamente entorpecidas pela religião e outras drogas mais aceitas socialmente (como a família) não hesitam em buscar nos braços de um completo desconhecido um pedacinho de conforto para um profundo desamparo, seria ao menos lógico que a filosofia libertina e sem grilhões de Lucas soasse como água gelada no deserto. Mas o mais interessante é que a visão que Galvão apresenta desse homem passa muito distante da idealização, e se aproxima do completo oposto, e assim não é surpreendente que ele passe a funcionar quase como uma figura mefistotélica ao longo da projeção, levando ainda à inegável comparação de que tanto o nome Lúcifer como Lucas possuem a palavra luz em suas origens, e já podemos tirar disso interessantes reflexões, principalmente se lembrarmos que Lúcifer, sendo “cheio de luz”, levou para as trevas aqueles que o seguiram, não é verdade?

Desde sua primeira aparição, Lucas é visto como uma espécie decadente do inesquecível Dean Moriarty (ou Neal Cassady) do livro On The Road, já que sua poética fala para impressionar duas ninfetas se torna intrigante em especial por, por trás dos óculos escuros e da jaqueta de couro, apresentar um sujeito calvo, com barba mal feita e grisalha, além de uma barriga de chopp insipiente e um rosto envelhecido. É perceptível o quanto o tempo passou para esse cara, algo para o qual ele não liga, e continua agindo de maneira desenfreada e egoísta, não possuindo paciência para “cu doce” de garotas frescas e nem ao menos ligando se um companheiro está abrindo seu coração, pois para ele isso não importa, e todas as “incríveis histórias de vida” que cada indivíduo tem a apresentar já se tornaram intragáveis clichês auto-condescendentes na esmagadora maioria dos casos, envolvendo pessoas que trilharam caminhos já estabelecidos e no meio deles perceberam a besteira que fizeram.

Há nessa visão muita sabedoria, por trás da arrogância egoísta. Mas, longe de ser uma fonte de inspiração ou muito menos de luz, como seu nome parece querer apontar, Lucas é uma força destrutiva e extremamente pueril, que um olhar impressionável pode levar aos extremos da genialidade ou da demência. O caso é que ele não faz parte de nenhum dos dois, e seu comportamento infantil constantemente é ressaltado pelo sempre talentoso Marat Descartes (um dos mais interessantes atores do Brasil) que chega mesmo a introduzir falhas na voz típicas de um pré-adolescente exaltado. Sua mudança de rumo constante cola bem com seus belos discursos sobre sentir a vida com a intensidade devida, mas observar seu comportamento naturalmente desperta certas dúvidas na cabeça do espectador, que começa a se questionar o que, afinal, há de tão genial assim naquela figura.

A visão de Galvão não poderia ser deixada mais clara do que em momentos como aquele Lucas é enfocado em um longo plano enquanto entorpecido em um corredor de um hotel decadente. E assim, a confusão ontológica em que se encontra Pedro se torna cada vez mais complexa, pois é um sujeito inteligente e racional que percebe a falta de sentido essencial em cada um dos estilos de vida com que se depara, chegando ao ponto de fazer da falta de opnião concreta sobre aquele universo um espelho para o estado de desconexão de si mesmo em que vive.

Passando longe de conclusões fáceis acerca das complexas questões que propõe (que, em essência, se referem à busca de um sentido para vida), Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa descarta o carpe diem e a noção de conforto familiar, e logo joga o espectador no caos de uma questão complexa demais para ser reduzido a um simples "viva e deixe viver”.

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