sábado, 3 de maio de 2014



Análise:

O Homem Duplicado (Enemy / 2014 / Canadá, Espanha) dir. Denis Villeneuve

por Lucas Wagner

O Homem Duplicado é um dos livros psicologicamente mais complexos de José Saramago. Versando sobre a temática da perda e procura de identidade em um personagem existencialmente amórfico, o grande escritor adentrava numa trama estranha e complicada, mas que mantinha o mesmo e irônico bom humor habitual, encontrando ainda espaço para seus típicos devaneios. Se, no entanto, o tom do livro é relativamente leve, essa adaptação dirigida por Denis Villeneuve e roteirizada por Javier Gullón opta por uma atmosfera opressiva e sombria, conseguindo manter-se essencialmente fiel ao romance, ao mesmo tempo em que tem a ousadia de explorar possibilidades criativas próprias e complexas.

A trama conta a história de Adam (Jake Gyllenhaal), um professor de História que, numa quebra de sua monótona rotina, resolve assistir um filme. Para sua surpresa, um ator figurante na película é sósia seu, e a partir de então, o pacato professor vai tentar encontrar o tal ator e descobrir mais sobre essa estranha situação.

Aproveitando a velocidade das novas tecnologias para evitar que a trama se torne arrastada como no romance (o que era um inegável problema), Villeneuve e Gullón fogem das fitas cassetes e complicadas pesquisas feitas pelo protagonista e usam DvDs e o Google, enxugando a trama e permitindo assim que a narrativa se mova de forma mais rápida e eficiente. Como já dito, todo o bom humor e a leveza do livro de Saramago aqui é trocada por uma atmosfera densa, desde o primeiro plano, quando vemos diversos prédios parcialmente cobertos por uma névoa. O tom sépia é o básico na paleta de cores do diretor de fotografia Nicolas Bolduc, que, juntamente com o constante uso de sombras, consegue uma perspectiva expressionista à obra, explorando formas de causar um estado de constante desconforto no espectador, ao mesmo tempo em que revela muito sobre a natureza distorcida de seu protagonista.

Villeneuve mantém um olhar atento para as possibilidades de simbolismos visuais, e não raro filma edifícios parecidos em formas e tamanhos, em particular no caso de duas torres pretas que lembram a estrutura de DNA. Em certo momento, o diretor ainda filma fios elétricos que se entrecruzam, e as aulas de Adam sobre a repetição de situações na História não é gratuitamente filmada duas vezes, mas ressalta a monotonia de sua rotina e, é claro, elementos essenciais ao significado do filme. Acima de qualquer simbolismo, no entanto, está a Aranha, motivo de estimulante dor de cabeça para o espectador.

Em diversas mitologias, em especial de origem africana, a aranha é vista como criadora do Mundo, tecedora de realidades, enquanto em algumas culturas é responsável por tecer realidades ilusórias com aparência de real. Com essas características, a aranha é responsável pela construção do destino do Homem, e sua teia é vista como símbolo para o Cosmos, o universo ordenado e acessível pela Razão. Quando, no fim do terceiro ato, Villeneuve dá um close em um vidro rachado de um carro, e percebemos como a estrutura do estrago se assemelha a uma teia, e isso numa cena que parece ser o melhor exemplo de Caos, podemos perceber a inteligência e confiança do diretor na condução de sua obra, quando parece viajar por mundos mitológicos (reais e/ou imaginários) aparentemente caóticos para encontrar o Cosmos.

O Homem Duplicado tem no Caos seu principal elemento, e se isso já não tinha sido suficientemente clarificado na frase que abre o filme (“O Caos é ordem ainda por decifrar”), o diretor repete a informação num plano em que Adam tem às costas um quadro negro onde várias palavras “Caos” convergem para uma “Ordem” no centro. Pois o universo do filme não faz o mínimo sentido, e não só em sua superfície, quando dois homens idênticos se encontram, mas em diversos elementos calculadamente posicionados pelo diretor e roteirista para implantar dúvidas e questionamentos na cabeça do espectador, inserindo elementos caóticos em detalhes sutis. Adam tem uma foto sua rasgada pela metade, excluindo assim a pessoa com quem divide a imagem; por que essa foto é a mesma que vemos de Anthony (Gyllenhaal também) e sua mulher em sua casa, em um momento posterior? Se Adam e Anthony são perfeitamente idênticos, por que um gosta tanto de bluebarries e o outro não? Qual é a da relação esquisita que ambos parecem ter com suas mães, quem buscam evitar?

O cotidiano vem repleto de diversos elementos caóticos que constantemente ignoramos, e a vida real vem sempre carregada e guiada pelo absurdo, e não é a toa que o filme lembre tanto a perspectiva filosófica do Absurdismo, que dita que a natureza contraditória entre o Universo e a “mente” humana causa o absurdo que é a vida em si. No entanto, vivemos à mercê das coincidências e constantemente nossa vida encontra sentido a partir do acaso. O Homem Duplicado leva essa questão ao âmbito do mitológico e quando vemos a Aranha aparecendo em sonhos, alucinações, ou mesmo no mundo real, vemos uma brecha da realidade onde o deus está tecendo sua teia e construindo contingências, criando ordem, Cosmos, sendo que antes desse estágio o que existe é o Caos, o incompreensível (lembrem-se: "Caos é ordem ainda por decifrar"). O Caos em si é um estágio para ser alcançado o Cosmos. O que talvez tenha acontecido com Adam e os outros personagens é que eles tiveram um vislumbre da engenharia da construção do Universo, e não sabem bem como lidar com isso. Logo, o filme rapidamente encara de forma literal uma perspectiva fantasiosa incrivelmente complexa e intrigante, que faz o ato de assisti-lo um exercício fascinante de busca de significados e links temáticos.

Voltando ao mundo dos meros mortais (e com a cabeça ainda girando um pouco devido à alucinação dos parágrafos anteriores), ainda vale ressaltar a competência da performance de Jake Gyllenhaal, cuja melhor atuação foi também sob comando de Villeneuve, no excelente Os Suspeitos. Aqui, o ator consegue compor Anthony e Adam com características distintas que os tornam criaturas complexas e individuais, e isso fica bem claro na própria postura altiva e confiante do primeiro, e nos ombros caídos e o andar trôpego do segundo. O trabalho de voz do ator também é notável, e se Anthony fala de forma grossa e imponente, sempre escondendo qualquer sinal de dúvida ou confusão, Adam já tropeça nas palavras e gagueja, numa representação de sua insegurança.

Apesar do uso constante da trilha sonora, Villeneuve acerta no controle que mantém sobre todos os elementos do filme, e consegue olhares atentos e intimistas que muito revelam sobre os personagens, como quando, depois de afirmar para a esposa que “está tudo bem”, Anthony entra no banheiro e, apoiado na pia, sussurra: “Fuck”. Além disso, o design de produção acerta na construção de ambientes reveladores sobre as personalidades dos moradores, como o apartamento quase sem móveis de Adam, a limpeza e organização que tem uma certa falsidade na casa de Anthony, ou até mesmo a bagunça artística da casa da mãe de Adam.

Esse texto não buscou responder perguntas acerca do significado do filme, até porque isso tiraria boa parte da graça de assistí-lo. Mas mostrou um possível caminho para sua compreensão. No entanto, há muito o que se pensar e que não foi abordado aqui: seria a “reunião pornográfica” do sonho no início e relembrada no terceiro ato mais um esbarrão com o mundo do mitológico? Qual é o sentido exato da bizarra cena final (que consegue a proeza de ser ainda mais esquisita do que era no livro)? Qual é o significado exato da enigmática chave? Buscar respostas a essas perguntas é o que faz de O Homem Duplicado uma obra tão intrigante, que merece várias visitas para cavar um pouquinho mais de seus tesouros.

- Outros textos meus sobre filmes dirigidos por Denis Villeneuve:

    


5 comentários:

  1. Ótima crítica, Lucas! Assisti esse filme espetacular ontem e ainda me sinto incomodado (no bom sentido) por não ter conseguido esclarecer vários pontos. O seu texto fala da “bagunça artística da casa da mãe de Adam” e essa foi uma das minhas dúvidas. Era mesmo o Adam naquela sequência? Assisti a sequência toda pensando que seria o Adam (a falta da aliança na mão esquerda, o fato de não gostar de blueberry), contudo, a última fala da mãe me deixou perturbado. Ela disse que apesar dele ser bem sucedido, ainda insistia em “participar de filmes de gosto duvidoso”. Aí surgiu a minha duvida: aquele era mesmo o Adam ou seria o Antony conversando com sua mãe? Ao final do filme, pensei também que aquela era uma cena deslocada: O Adam assumiu a identidade do Antony depois de sua morte e aquela sequência do encontro com a mãe foi deslocada do final para o meio do filme. O que você pensa sobre isso? Mais uma vez, parabéns pela ótima crítica!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Israel, muito obrigado pelo elogio! Fico feliz de receber esses feedbacks. São sempre muito valiosos.

      Então, sobre essa cena, acho o seguinte: o filme mostra como o processo de Caos vai se transformando em Ordem. E muitas vezes nossa própria vida parece não fazer sentido, mas como uma espécie de transição para um momento em que as coisas fazem mais sentido. O filme trata disso no âmbito do mitológico, como falei, como se realmente um deus-aranha estivesse tecendo uma teia de novas realidades. O objetivo era transformar Adam em Anthony, punindo o segundo por sua arrogância e permitindo que o primeiro, um homem bom e solitário, calçasse os sapatos dele. Eles se encontrarem é o Caos, e nessa conversa com a mãe, acho possível que estejamos vendo os dois personagens em uma só pessoa, como se, mais uma vez, os meandros do Caos se fizessem visível no mundo real. Acredito que foi algo desse tipo...

      Excluir
    2. Obrigado por compartilhar sua explicação sobre a cena, Lucas. Realmente faz bastante sentido. Não tinha pensado nessa possibilidade de estarmos vendo os dois personagens de uma só vez e, pensando em como a cena se encaixa no resto do filme, realmente penso ser a melhor análise ela. É muito bom ver que Villeneuve conseguiu nesse filme expressar toda a complexidade do livro, inclusive incluindo novos aspectos. Pra falar a verdade, fiquei um pouco decepcionado com o “Ensaio Sobre a Cegueira” do Meirelles, pois considero esse o melhor livro do Saramago e não pude deixar de ficar um pouco receoso quando soube que “O Homem Duplicado” seria filmado. Ainda bem que fui surpreendido com esse excelente filme. Parabéns pela crítica e continuarei acompanhando o blog. Abraços!

      Excluir
  2. Caro Lucas, achei fantástica a sua crítica sobre o filme.
    Quando acabei de assistir "O homem duplicado" fiquei cheia de questionamentos sobre o que todas aquelas metáforas (e principalmente o final do filme) representavam... qual seria a realidade dos fatos. Procurei por algum tempo as minhas respostas, mas foi no seu post que consegui pelo menos delinear um sentido para o meu raciocínio. (Muito obrigada por isso).
    Um questionamento que ainda fiquei é sob a esposa do Antony (que se encontra no 6º mês de gestação). Qual o sentido oculto em a gestante se "transformar" na aranha... Em muitos momentos a imagem da mulher gestante, mostrada de uma forma sensual, é posta nas cenas. Qual seria esta relação? Será que existe relação? A pessoa que me indicou esse filme me recomendou que observasse tudo neste filme, porque cada objeto e cada metáfora tinha uma razão de ser... Estou inquietada!! kkkkk Abraço.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, França! Fico extremamente feliz que vc tenha gostado do texto :) receber feedbacks assim é sempre uma honra!
      Quanto ao seu questionamento, acho-o bastante intrigante. Aliás, enquanto assistia ao filme, não raro me veio que uma possível interpretação para a Aranha estivesse relacionada à figura da Mulher, e não é a toa que o protagonista parece enfrentar problemas com o sexo oposto. É uma visão intrigante que vale uma outra visita à obra com essa ideia na cabeça. E concordo plenamente sobre o que falou sobre a imagem de sensualidade presente na figura da gestante, uma imagem fascinante e, com certeza, com possíveis significados deliciosos de desvendar!

      Muito obrigado, novamente, e abraços!

      Excluir